Em meados de julho, quando assumir a Embaixada brasileira em Nova Délhi, Vera Machado vai inaugurar a era dos "embaixatrizos" na diplomacia nacional. A estranha palavra é proposta como neologismo por seu marido, o engenheiro Ronald Machado, 60 anos, para designar o "esposo de embaixadora". A novidade marca a chegada das mulheres à cúpula do Itamaraty, uma instituição que resistiu o quanto pôde à ascensão feminina em seus salões. Hoje, um número inédito de mulheres chega aos cargos de elite da diplomacia: são seis embaixadoras e 21 ministras, distribuídas em sete chefias de postos no exterior e em cinco chefias superiores no Brasil. "Estas carreiras têm sido marcadas por alto grau de profissionalismo. É natural que cheguem ao topo", reconhece o secretário-geral do Itamaraty, embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa.
Não foi uma conquista fácil. As portas só se abriram graças à tenacidade de duas pioneiras, a baiana Maria José de Castro Rebello e a carioca Maria Sandra Cordeiro de Melo. "Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, vide tantos atributos de discrição e competência são exigidos", diz um despacho do então ministro Nilo Peçanha, de agosto de 1918. Apesar do tom machista, o despacho permitiu que Maria José ingressasse na carreira, tornando-se a primeira diplomata do país.
Em 1938, foi novamente vetada a presença feminina. A proibição durou 24 anos. De novo, a força de vontade de uma aspirante prevaleceu. Maria Sandra assistiu à primeira aula no Instituto Rio Branco, em 1954, munida de uma liminar. Outras 226 mulheres conseguiram chegar à escola de diplomatas desde então, sem deixar dúvidas quanto à eficiência feminina. Marcam presença no Itamaraty. Nas últimas seis semanas, quatro mulheres receberam a incumbência de representar o Brasil na Índia, no Equador, na Guatemala e em Trinidad-Tobago. Elas se equiparam a Theresa Quintella, que comanda a Embaixada brasileira em Moscou há três anos. É um feito e tanto quando se lembra que, nos anos 50, apenas três chegaram ao último nível da carreira. As promoções para postos consulares também não param de acontecer. A embaixadora Heloísa Vilhena, por exemplo, tomou posse como cônsul em Roma, na semana passada. Nenhuma dessas diplomatas alcançou posto de embaixador no disputado circuito Elizabeth Arden - Paris, Londres, Nova York e Roma -, onde brilham embaixatrizes tão poderosas quanto charmosas, como Lúcia Flecha de Lima.
As embaixadoras emprestam charme às rodadas diplomáticas. Não há assunto que não possa ser tratado por elas. Prova disso é Maria Dulce Silva Barros, 42 anos, que assumiu o posto de ministra conselheira na Embaixada brasileira em Haia. Vai se ocupar do comitê que discute a proibição de armas químicas. "A única restrição, agora, é assumir postos de embaixadora em países que discriminam oficialmente as mulheres", constata Maria Dulce, referindo-se ao mundo muçulmano. No Brasil, as diplomatas não se cobrem de véus, mas evitam vestir calças compridas no trabalho - um resquício do conservadorismo do passado. "Mudei meu guarda-roupa. Fiquei mais formal", admite a terceira secretária Mariana Madeira, 27 anos, ao abolir os jeans.
Conciliar profissão e vida pessoal ainda é um desafio. Maria Dulce parte para Haia, mas vai se afastar do marido, professor universitário, e dos dois filhos. Não é à toa que esse estilo de vida - errático - acabou multiplicando as uniões entre colegas. Existem no Itamaraty 40 casais de diplomatas. "Flexibilizar as normas sobre casamento impulsionou a carreira das mulheres", admite o secretário-geral. Até a década de 70, entretanto, quando dois diplomatas se casavam, um deles abandonava a carreira. Aconteceu com Maria Sandra, ao tornar-se mulher do embaixador José Augusto Macedo Soares. Ela aposentou-se, virou embaixatriz e, deprimida, suicidou-se em 1975, em Bogotá. Dez anos depois, caía o impedimento de marido e mulher assumirem postos no exterior.
Das seis embaixadoras atuais, duas são casadas. Entre as ministras, a contabilidade afetiva é mais favorável. Mais da metade conseguiu manter seus casamentos. Aos 59 anos, a cônsul Heloísa Vilhena encarou a nona mudança de país em 35 anos de carreira. "Casamento fica difícil. Somos independentes, mas a cada três anos podemos ser transferidas para algum lugar do mundo", pondera. "Uma amiga brinca que não somos feias, nem burras, mas não arrumamos marido." Em compensação, Heloísa morou em Londres, Moscou, Paris e Santiago. Quando vão para fora, os salários aumentam bastante. Um embaixador, que no Brasil ganha R$ 10.500, no exterior recebe em média US$ 15 mil.
Embaixadoras novatas costumam ser confundidas com embaixatrizes. "Teria sido mais fácil casar com um diplomata. Não teria esperado 32 anos para virar embaixadora", ironiza Vera. Ronald, o marido, sente-se à vontade ao desempenhar as funções de embaixatriz: prepara jantares, chás e recepções, sem reclamar. "Em seis meses, serei um marajá", anuncia, ao traçar seus planos na Índia. Entre eles, comandará um casarão com 15 serviçais. Quando a mulher serviu na Espanha, como conselheira, o maridão ocupou o tempo com atividades culturais. Foi 101 vezes ao Museu do Prado. Poderá superar a marca ao freqüentar o Taj Mahal.
A primeira vitória
Em 28 de agosto de 1918, Nilo Peçanha autoriza, com ressalvas, Maria José Rebello a prestar exame para a Secretaria de Estado das Relações Exteriores
"Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, vide tantos attributos de discrição e competência são exigidos, bem que não são privilégio do homem - e si a requerente está apparelhada para disputar um logar nessa Secretaria de Estado (...), o que não posso é restringir ou negar o seu direito...
Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que continuassem a direcção do lar, taes são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração, desde que fiquem provadas suas aptidões."